O grito que atravessa o concreto
- Nayara Ribeiro

- 20 de nov.
- 3 min de leitura
Pixação em São Paulo nos convida a refletir sobre apagamento racial, arte e resistência

Feriado Nacional da Consciência Negra: o dia em que as narrativas de resistência e memória se tornam ainda mais presentes.
Em São Paulo, essa resistência ganha forma nas ruas: nos muros, nos prédios, nos viadutos e, principalmente, nas marcas deixadas por quem, historicamente, foi apagado das estruturas de decisão e das representações oficiais da cidade.
Antes de tudo, é essencial fazer uma distinção: pichação é qualquer escrito ou marca em parede. Já pixação, ou pixo, é o movimento especificamente paulista: um estilo próprio de caligrafia, estética e pertencimento, criado nas periferias e reconhecido mundialmente como uma linguagem urbana única. Entender essa diferença é fundamental para compreender a força política do pixo na maior cidade da América Latina. Para quem quiser se aprofundar no tema, o podcast “Pizza com Graffiti” traz conversas sobre história, cultura urbana e a cena paulistana, servindo como ponto de partida para olhar a cidade com outros olhos.
Graffiti x Pixo
Enquanto o grafite foi gradualmente abraçado por políticas públicas e projetos institucionais, transformando-se em muralismo e revitalização urbana, a pixação permaneceu à margem, criminalizada e combatida. E é justamente essa marginalidade que lhe confere potência. Como revela o documentário “Através do Grafite – A Arte que Pulsa com a Cidade”, a arte urbana constrói novas visualidades e narrativas, abrindo brechas democráticas. Mas quando olhamos para o pixo, enxergamos algo além da estética: vemos enfrentamento direto às estruturas de controle urbano.

A pixação surge como resposta à invisibilidade. Seus praticantes, em sua maioria jovens negros e periféricos, enfrentam diariamente os mecanismos sutis e explícitos de exclusão da metrópole. Como propõe o filósofo francês Gilles Deleuze ao descrever as sociedades de controle como aquelas que modulam comportamentos, restringem circulação e padronizam linguagens, o pixo faz o contrário: despadroniza, rompe, rasga o código visual da cidade.
Pixo além dos muros
O documentário “PIXO”, disponível no YouTube, escancara essa urgência. Nos relatos e nas imagens, vemos que a busca dos pichadores não é pelo aplauso, mas pela existência. Escalam prédios como quem escala a própria vida: rápida e arriscada, sempre à beira de ser interrompida.
Suas tags não pedem permissão; elas exigem presença. Em uma cidade que tenta apagar corpos negros de suas narrativas, o pixo devolve a esses corpos a autoria.

A tensão atinge seu ápice quando lembramos do projeto Cidade Linda, que cobriu quilômetros de arte com tinta cinza. A promessa era “limpar”. Mas apagar tais imagens também é apagar vozes. A resposta veio com ironia potente: o nome do então prefeito João Dória pichado repetidas vezes nos muros recém-cinzentados. O gesto devolveu a autoria ao agente do apagamento, expondo a contradição estética e política de quem tenta controlar a paisagem urbana. Enquanto o Estado criminaliza a pixação, a própria ação repressiva vira matéria-prima para novos atos de resistência.

É nesse ponto que a pixação dialoga diretamente com o Dia da Consciência Negra: ambos expõem o apagamento, ambos reivindicam narrativa, ambos denunciam a cidade que insiste em selecionar quem tem o direito de existir nas superfícies e estruturas que a cercam.
Resistir é Insistir
A luta pela memória negra é, também, uma luta contra o silenciamento, e o pixo é uma das linguagens mais radicais dessa recusa ao silêncio.
Enquanto o grafite dialoga com a cidade, a pixação confronta. Enquanto o grafite colore, a pixação marca. Enquanto o grafite negocia, a pixação insiste. E essa insistência é política. É resistência. É vida.

No feriado da Consciência Negra, olhar para o pixo é olhar para a cidade com honestidade. É reconhecer que, por trás das letras verticais e quase indecifráveis, há histórias que não cabem nos muros institucionais. São histórias que sobem prédios, cruzam avenidas, invadem paisagens e nos lembram, sempre, que a cidade também pertence a quem a escreve.
Porque enquanto houver alguém disposto a arriscar o próprio corpo para deixar uma marca, haverá também a prova de que São Paulo não pertence apenas aos que podem, mas também — e sobretudo — aos que resistem.





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